Sempre soubemos da qualidade das produções argentinas que chegam até nós, mas parece que eles se superam a cada nova empreitada de tal maneira que é raro sairmos de uma sessão de um filme argentino sem estar emocionado ou impressionado com algo, e mesmo exagerando na edição recortada, "Uma Noite de 12 Anos" fez o pequeno público na sala imensa do Cine Cauim chorar de soluçar ao final ou pelo menos sair comovido com tudo o que os protagonistas sofreram durante a ditadura uruguaia de 1973 até 1985, de tal maneira que o filme soou forte e entregou com muito realismo todo o sentimento de três dos muitos presos que se opunham ao início do governo. Claro que como filme histórico a trama foi baseada em relatos dos protagonistas, e não seguiu algumas linhas que talvez muitos divirjam, mas como impacto visual o resultado foi tão bem colocado nas palavras e atitudes dos personagens, que não tem como não imergir na história e ver o que foi essa época por lá, que não foi muito diferente da de 1964 daqui, ou seja, dá para co-relacionar e se envolver entendendo um pouco do que estudamos nos livros de História.
O longa nos situa em 1973, no Uruguai, aonde José Mujica, Mauricio Rosencof e Eleuterio Fernández Huidobro são militantes dos Tupamaros, grupo que luta contra a ditadura militar local. Eles são presos em ações distintas e encarcerados junto a outros nove companheiros, de forma que não possam sequer falar um com o outro. Ao longo dos anos, o trio busca meios de sobreviver não só à tortura, mas também ao encarceramento que fez com que ficassem completamente alheios à sociedade, sem a menor ideia se um dia seriam soltos.
O diretor e roteirista uruguaio Álvaro Brechner não teve a sorte de lançar fortemente seus dois longas anteriores por aqui em grande circuito, mas garanto que muitos assim como eu, após conferir esse seu novo trabalho certamente irão ver do que ele foi capaz em suas duas obras iniciais da carreira, pois é nítido o nível de direção altíssimo que ele colocou em cada uma das cenas do longa, de modo que notamos ângulos precisos para sintetizar o que os personagens passaram nos seus 12 anos de reclusão, vemos diálogos bem encontrados para que cada ato fosse memorável, e principalmente vemos as situações que levaram os personagens até ali, mas aí é que entra um dos poucos problemas que a trama tem, que por não seguir uma linearidade bem determinada, alguns momentos acabam soando estranhos pelas idas e vindas, deixando o público levemente perdido em alguns atos, mas nada que uma boa concentração faça você se conectar novamente e entender que ali está sendo algo do tipo de um pensamento/lembrança dos personagens para junto de seus devaneios após a tortura, o isolamento em que a paranoia começa a dominar suas cabeças. Diria que a precisão do diretor em retratar tudo com muita sujeira na fotografia, ambientes bem realistas, e principalmente atores muito bem preparados (magros, com cabelos e barbas desgrenhados, aspectos horríveis e acabados) para entregar seu melhor, foi algo que poucas vezes vimos no cinema mais artístico em si, quase transformando a obra em algo até maior do que o esperado, mas felizmente mantendo as raízes bonitas que filmes pequenos conseguem mostrar, ou seja, um luxo dentro da simplicidade.
Como já falei, realmente é incrível ver a preparação de elenco que o longa fez, pois temos os três protagonistas mostrados com semblantes diferentes a cada ano, acabados, desgastados e ao mesmo tempo vemos eles em suas épocas áureas bonitos e arrumados, e assim sendo não bastasse o grande trabalho da maquiagem, cabelo e figurino, também conseguiram expressar seus sentimentos nos olhares e trejeitos, ou seja, deram um show. O espanhol Antonio de la Torre entregou seu Pepe Mujica com muito discernimento, trabalhando cada ato com simplicidade e muita dinâmica cênica nos trejeitos, criando momentos de loucura, mas também sendo sutil aonde precisava para não parecer eufórico, ou seja, conseguiu chamar a responsabilidade de fazer um dos nomes mais respeitados hoje da política sul-americana com leveza e agradar do começo ao fim. Filho de peixe, peixinho é, já diria o ditado, e se ainda não tínhamos tido a oportunidade de ver o filho do mestre Ricardo Darín nas telonas por aqui, pois só tinha feito longas menores na carreira, agora foi a vez de Chino Darín aparecer com força, e mostrar muita semelhança tanto na aparência do pai mais jovem, quanto na forma de atuar, pois seu Mauricio Rosencof foi doce e incrível, fazendo poemas para os soldados dar para suas namoradas, conseguindo ao menos não ser tão hostilizado em algumas das cadeias, e ainda trabalhando trejeitos bem colocados para agradar, ou seja, tem futuro o rapaz. Alfonso Tort também dosou suas atitudes e fez um Huidobro bem amarrado, trabalhando cada ato com muita clareza, tendo momentos marcantes e singelos para realçar cada um sem quase nenhum esforço, mas sempre chamando a atenção. César Troncoso que estamos acostumados a ver em novelas e filmes brasileiros foi bem colocado como um militar sem nome, mas de muita imposição que conseguiu chamar a atenção pela força dinâmica, agradando bastante também. Quanto as mulheres da trama, diria que todas foram bem doces nos atos e conseguiram comover o público tanto nas cenas curtas do miolo, quanto no fechamento emocionante do longa.
No conceito visual a equipe de arte conseguiu arrumar locações incríveis, que não sei se estão bem conservadas no país para retratar cada ato vivido pelos personagens, encaixando prisões sujas e isoladas, aonde os personagens praticamente deixaram de existir, mas o grande feito da equipe nem tanto foi na cenografia (embora tenha sido incrível cada uma das prisões), mas sim no figurino e no visual dos personagens, trabalhando uma maquiagem cênica tão precisa que mesmo que os atores realmente tenham perdido tanto peso para a maioria das cenas, ainda foram sujos e bem desenhados para que ficassem com aspecto de abandono monstruoso, ou seja, algo incrível de ver. A fotografia nessa caso nem precisou brincar com os tons, foi sujar ao máximo as lentes, e reforçar muito um tom avermelhado e marrom para dar um aspecto ainda mais forte para o longa, afinal ficaram anos sem nem ver a luz do sol ou da lua, e as duas cenas em que puderam ter esse gostinho foram lindas por também amenizarem o tom e dar todo o aspecto de ganho de vida.
O longa em si não possui muitas canções para marcar o ritmo, mas certamente "The Sound Of Silence" de Simon e Garfunkel interpretada por Silvia Pérez Cruz nos últimos atos é de arrepiar a alma, afinal isso foi o que os protagonistas mais tiveram retirado deles, a voz, passando anos em silêncio, então é claro que deixo aqui o link para todos arrepiarem junto, e ouvir muitas vezes.
Enfim, é um longa incrível, que me emocionou e certamente irá emocionar a todos que forem conferir, pois vale demais conhecer um pouco mais de História, e saber mais como é a tal ditadura que muitos ainda defendem por aí. Certamente deveria tirar um pouco de nota pela edição bagunçada, mas é um filme que não cansa, e passa muita mensagem para quem for assistir, então vamos manter nota máxima, e ser feliz recomendando que todos vejam, afinal está infelizmente com uma bilheteria minúscula em todos os lugares que tem estreado. Aqui em Ribeirão ficará em cartaz por mais alguns dias no Cine Cauim, então corra para conferir. Fico por aqui hoje encerrando essa semana cinematográfica, mas volto na próxima quinta, então abraços e até logo mais.
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