Irei começar meu texto de uma forma diferente hoje, pois sei que muitos odeiam o cinema nacional, alguns vão falar que esse filme não é brasileiro por ser dirigido e roteirizado por um estrangeiro, alguns vão ficar apenas citando erros, outros vão dizer que é algo muito simples e por isso não tem valor. Para todas essas pessoas, eu só digo uma coisa, não vá mais aos cinemas, fique em casa e leia um livro. Para todas as demais pessoas que vão pagar caro, afinal um ingresso hoje custa um valor bem salgado, para ter 2 horas de alguma experiência cinematográfica, que ela ao menos seja satisfatória e prazerosa, e o filme "Trash - A Esperança Vem do Lixo" não só cumpre com isso, mas mostra que até mesmo no Brasil temos capacidade de criar algo envolvente, com uma boa trama de aventura sem descaracterizar nada de nossas comunidades e muito menos sair da ideologia que vivem as pessoas por aqui. E digo ainda mais, precisou vir um diretor estrangeiro para mostrar isso, já que alguns diretores nacionais preferem fazer filmes para o próprio umbigo, apenas gastando dinheiro de incentivos fiscais, sem pensar em quem queira assistir suas loucuras.
O filme nos mostra que Raphael, Gardo e Rato são três meninos que vivem num lixão. Um dia, ao encontrar uma carteira misteriosa, decidem embarcar numa aventura, mas o que eles não sabem é que pessoas más como o policial Frederico e o político Santos estão atrás deles. Os garotos só podem contar com a ajuda do pastor Juilliard e da professora Olivia.
Quanto o escritor Andy Mulligan escreveu o livro, não necessariamente a história se passaria aqui, e sim num país fictício, mas se adaptou tão bem à nossa realidade que Richard Curtis nem deve ter dado trabalho para Felipe Braga contar como é o nosso país para juntos montarem o roteiro do filme, pois a nossa realidade é sofrida e que com uma caracterização tão minuciosa dos fatos, não temos como não falar que esse filme foi feito para ser nosso. Aí entra em cena um diretor renomadíssimo como é Stephen Daudry com uma mão única e cria uma aventura de busca por algo que nem mesmo os jovens inicialmente imaginam ser, mas querem ir a fundo, porquê acreditam ser o certo, e o mundo fantasioso cria vida nas ruas, favelas e lugares diversos do Rio de Janeiro, com um olhar duro por parte dos adultos, mas com uma magia infantil ímpar que só teve sucesso devido às escolhas perfeitas do diretor em relação ao jovem elenco que soube trabalhar tão bem que nem parece que são iniciantes na arte de atuar, mas como alguém já disse: "já nascemos sabendo fingir choro, então atuar é moleza". Brincadeiras à parte, o diretor conseguiu um feito tão proveitoso com os jovens, enquadrando bem sua câmera para termos dinâmica e sempre estarmos com as perspectivas dos jovens, mesmo que para isso, os câmeras tivessem que andar sobre telhados, entrar em águas sujas e tudo mais, para termos a realidade como deve ser vista.
No quesito atuação, muitos começariam pelos nomes renomados, mas como todos são praticamente coadjuvantes aqui, vamos falar de quem interessa primeiro. E claro vamos com o protagonista Raphael, mais conhecido por seu nome real, Rickson Tevez, que trabalhou tão bem suas expressões, eximindo felicidade quando precisava, mantendo o carisma alto, sofrendo muito com cara de dor e clemência nas cenas que apanha, estando com os olhos curiosos à todo instante e mostrando seu lado detetive muito bem encaixado nos momentos chave, não querendo ser nenhum Sherlock Holmes, mas sim alguém que brinca de detetive na vida almejando algo. Eduardo Luis transformou o seu Gardo em um personagem muito humano e interessante, unindo as características da rua sem perder estilo, e o jovem é uma pecinha rara dentro da trama, que acabamos nos familiarizando bem com o que consegue passar, bons trejeitos e leva jeito para trabalhar mais no cinema. Gabriel Weinstein inicialmente assusta com seu Rato, mas vai tornando a experiência do filme tão viva que seus trejeitos acabam nos colocando quase que como um irmão na câmera, o jovem tem um talento único de arrumar confusão e sair dela com expressões rápidas e bem colocadas, um luxo para sua idade. Agora vamos pros estrelados, começando por Selton Mello, sim aquele ator que esse Coelho que vos digita não consegue gostar de suas atuações, e por incrível que pareça, finalmente achamos um papel que suas expressões couberam perfeitamente, seu policial corrupto é fantástico, onde trabalhou bem o semblante e colocou tudo que podia fazer num único filme, sua cena no carro ouvindo música clássica enquanto rolava tudo do lado de fora foi espetacular. Wagner Moura faz poucas cenas no filme, mas como todas são muito importantes para a trama, seu José vem com as características tradicionais que já conhecemos e sabemos que ele faz bem, trabalhando seu diálogo com a essência necessária e pontuando cada detalhe com seu olhar. Martin Sheen fez de Juilliard um padre/pastor interessante não só por humanizar a favela como falando bem português, claro que com muito sotaque, botou expressões inteligentes e semblantes bem humanos na trama, mesmo bebendo muito deu um tom íntegro para os momentos que esteve na tela. Rooney Mara já não trabalhou tanto o português, mas arranhou algumas boas frases sem forçar tanto e encaixada como uma "professora" de inglês na comunidade saiu-se muito bem como arquétipo para ligar a ideia americanizada que o filme colocou um pouco na trama, a atriz é boa em papéis mais diferentes, e aqui sendo simples demais não combinou tanto, mas também teve bons momentos e isso acaba agradando. O personagem de Stepan Nercessian aparece bem rapidamente e isso nos deixa bem feliz, pois ele forçou demais no estilo "político" de ser, e isso já estamos cansados de ver nas telas. Dos demais, a maioria aparece tão rapidamente que nem quase é relevante para a história, mas ao menos ninguém quis aparecer mais do que os protagonistas, e isso já é um avanço imenso quando estamos falando de atores brasileiros.
Que a equipe de Tulé Peak sabe criar artes como ninguém no Brasil, isso todo mundo já sabe, afinal é só lembrar de "Cidade de Deus", "Tropa de Elite", "Ensaio Sobre a Cegueira" e muitos outros que conseguimos ver a precisão técnica que ele tem, e aqui trabalharam tão bem com a cenografia que fiquei imaginando a dó de destruir o set na cena da favela, pois havia em cena tantos elementos visuais interessantes que só de lembrar do que acontece já bate uma tristeza imensa, e não apenas nessa cena, mas o esgoto do personagem Rato é bem trabalhado visualmente, as locações escolhidas para as cenas de perseguição foram bem escolhidas, e até mesmo o cemitério teve seu charme dentro da proposta, e dessa forma tivemos um trabalho visualmente perfeito que não teria como ser melhorado. Se existe uma área dentro do cinema nacional que têm profissionais renomados internacionalmente é a direção de fotografia, e Adriano Goldman que ultimamente deu um show em "Álbum de Família" fez aqui milagres com sua câmera, impondo algo interessante que costuma nem ser de responsabilidade da área, mas sim da trilha sonora, e aqui a fotografia dita o ritmo da trama, pois as nuances de dia/noite conseguem trabalhar tão em prol da velocidade que o filme toma que a cada ângulo e filtro escolhido, o longa toma um rumo diferente, e isso é muito bacana de ver na tela, pois o diretor soube dosar cores bem duras nos momentos que os jovens estão pensativos ou diante de algum ator que exigisse um trabalho maior de diálogo, e na hora que estão sozinhos correndo, o marrom domina dando uma acelerada na trama.
Mas claro que o longa não ficaria sem ter boas trilhas sonoras, e colocando funks, afinal estamos numa favela, e canções bem encaixadas com cada momento, ele nos amarra com tudo que é passado, e junto de uma trilha composta exclusivamente para as cenas que não temos nada cantado, o luxo da trama fica mais evidenciado ainda.
Enfim, é um excelente filme, claro que tem defeitos, mas são tão pequenos frente à tudo de bom que é mostrado que nem dá para relevar. Além disso a produção foi corajosíssima em determinada cena botar lenha na fogueira questionando grandes organizações e seus desvios de dinheiro para eleições e tudo mais, então a única coisa que tenho para falar (até parece que não fiz um texto imenso falando demais) é que você pare tudo o que está fazendo agora e vá para uma sala de cinema conferir esse filme. Sei que muitos não vão concordar com minha nota, mas posso dizer que hoje sinto orgulho novamente de ter visto um filme nacional, mesmo que feito por um diretor estrangeiro, tão bem trabalhado e que posso colocar como um dos que recomendo com certeza. Fico por aqui agora, mas ainda falta uma estreia e uma pré para conferir nessa semana, então abraços e até breve pessoal.
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