Quando sabemos que o mundo anda de uma forma completamente maluca, e que as relações cada dia fluem da maneira mais bizarra possível, passamos a admitir que coisas que julgaríamos anormais no dia a dia de uma pessoa "normal" passassem a ser comum e aceitáveis, e assim mentiras cada dia passam a ser mais comuns e o resultado começa a passar do eixo provável de ser aceitado. Começo meu texto sobre "Elle" dessa forma, pois o que vemos no filme é algo que não podemos ver como algo comum, e sabemos bem que esse estilo de coisa por mais ficção que o longa transmita, é passível de ser vista atualmente, com amigos se traindo, filhos sem rumos assumindo erros sem saber o que estão fazendo com suas vidas, desejos mais malucos sendo incorporados, e por aí vai. Mas deixando o lado "real" da trama, e analisando mais friamente a ficção que o diretor nos entrega, o longa é forte e muito bem pontuado de uma atuação ímpar da protagonista que se deixou levar dentro da história bizarra e acabou trabalhando cada nuance com uma perspectiva bem crua, para que o filme fosse entregue também cru para o público viajar em tudo o que vê na tela, e gostar ou odiar o que é mostrado, pois dificilmente veremos alguém em cima do muro com o que irá assistir, mesmo sendo possível de acontecer também.
O longa nos mostra que Michèle parece indestrutível. Proprietária de uma empresa líder do mercado de videogames, ela encara sua vida amorosa com a mesma atitude implacável com que dirige os negócios. Ser atacada em sua casa por um agressor desconhecido muda a vida de Michèle para sempre. Quando ela, com determinação, identifica o homem, ambos são atraídos para um jogo curioso e emocionante que pode, a qualquer momento, escapar totalmente ao controle.
Não diria que o longa é um filme interessante de ser digerido, pois trabalha sentimentos complexos de serem analisados pelas pessoas, transmitidos pelos atores e difíceis de serem captados pelo público, de tal forma que a trama facilmente pode ser vista por um público mais jogado que vai acabar achando que o longa é um suspense/terror com pitadas eróticas, enquanto outros julgarão o filme como algo artístico e reflexivo. E ele pode ser encaixado completamente dentro das duas vertentes sem erro, ou seja, o diretor Paul Verhoeven que sempre procura colocar uma pontinha polêmica em seus longas acabou deixando o longa inteiro polêmico e cheio de indagações para que refletíssemos sobre cada momento, e de certa forma isso é bom, mas também destoa da fluidez que um filme possa ter para ser visto numa levada só. Portanto, o resultado da direção e do roteiro da obra ficou bem feito, mas mais para ser curtido de uma maneira mais diluída, com pausas e principalmente, em sessões com discussões, pois é um filme para se conversar sobre e não só ver, o que muitos não vão acabar gostando do estilo. Outra grande sacada que temos de pontuar sobre o filme, são as diversas reviravoltas que nos fazem ir duvidando de cada um possível estuprador, pois a cada nova cena vamos apontando a arma para um novo ator, e isso sim é um feitio muito bem trabalhado que agrada demais.
Sobre a atuação é fato e 100% claro, Isabelle Huppert destrói em cena com sua Michèle, dificilmente veríamos qualquer outra atriz colocando tantas nuances numa interpretação da forma que ela fez, soando falsa, seduzindo e sendo seduzida, sofrendo abusos, brigando, discutindo, sendo divertida, séria, e tudo mais com uma visceralidade incrível, ou seja, mais do que merecido todos os prêmios e indicações que está levando para si, e claro para o filme, pois a atriz conseguiu mais do que interpretar o papel do filme, mas segurar a onda completa da trama, conduzindo o filme como se fosse sua obra de arte. O longa em si poderia ser olhado somente para Isabelle, mas outros bons atores, alguns que nem imaginaria ver da forma que fizeram no longa, conseguiram chamar atenção, a começar claro por Laurent Lafitte com seu Patrick sempre sério e bem colocado, que até passa uma boa impressão inicial, mas como costumamos dizer, embaixo de uma pele de cordeiro sempre pode existir um lobo escondido, e aqui como sua esposa diz no final ele era uma boa alma, e retrucamos, só que não! Agora um que poderia ter feito caras melhores foi Jonas Bloquet com seu Vincent, pois caiu bem em algumas cenas, principalmente nas que faz com sua namorada, mas sempre destoado da câmera acabou mais incomodando pelas burradas que não admitia fazer do que por algo bem feito.
Visualmente a trama nos mostra o quanto pessoas em outros países se sentem seguras demais, pois um portão que não se tranca, portas e janelas velhas e levemente fechadas num bairro completamente escuro e em um casarão é algo que por aqui não veríamos de forma alguma, mas como estamos na França tudo é válido, e a equipe de arte elaborou diversos elementos para que tudo fosse refletido na situação da protagonista, desde sua casa, até a casa do vizinho com elementos contraditórios, sua empresa de jogos com pessoas estranhas fazendo jogos estranhos, uma família completamente conturbada que fazem questão de mostrar historicamente, ou seja, a arte do filme ajuda demais a performance da protagonista, e o resultado soa incrível para ser discutido de diversas formas. E aliado à tudo isso vem o diretor de fotografia e trabalha a trama toda em tons bem escuros, criando nuances completas de mistério, mas sempre deixando uma pontinha aberta para que investiguemos cada ato, ou seja, algo bem montado pronto para o desprevenido acontecer.
Enfim, poderia falar muito sobre o filme, mas é algo que como disse vale mais a pena ser visto e sentido de acordo com o que desejar, pois como todo bom filme artístico, o diretor preza por cenas abertas para discussão e reflexão, não dando bem sua própria opinião. É uma trama que trabalha temas controversos e de alta discussão, mas que agrada por não forçar incisivamente o que está certo ou errado na vida da protagonista que também é controversa. Portanto recomendo a trama para todos que gostem de filmes mais elaborados, mas que também pode decepcionar quem esperar algo mais dele e for ver achando se tratar de uma obra magistral. Bem é isso pessoal, fico por aqui hoje, mas volto amanhã com mais textos, afinal essa semana está recheada de estreias por aqui, então abraços e até breve.
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