Ao mesmo tempo que vemos um filme incrível, com uma crítica monstruosa ao sistema de seguridade social da Inglaterra, que poderia ter sido feito tranquilamente no Brasil com quase a mesma ideologia, acabamos sentindo diversos estilos e sensações com o que nos é mostrado em "Eu, Daniel Blake", mas sem dúvida alguma o grande acerto do filme foi ser crível nos pontos estruturais do ser humano, e mostrar que para o governo somos apenas números, e quem deseja ajudar um número? Ninguém! E vendo isso o povo só sabe de uma coisa, trabalhe e dependa de você, pois quando não puder mais, você continuará trabalhando, até morrer, pois esperar alguma ajuda vinda de governantes e sistemas do governo é algo que não funciona em qualquer parte do mundo.
O longa nos mostra que após sofrer um ataque cardíaco e ser desaconselhado pelos médicos a retornar ao trabalho, Daniel Blake busca receber os benefícios concedidos pelo governo a todos que estão nesta situação. Entretanto, ele esbarra na extrema burocracia instalada pelo governo, amplificada pelo fato dele ser um analfabeto digital. Numa de suas várias idas a departamentos governamentais, ele conhece Katie, a mãe solteira de duas crianças, que se mudou recentemente para a cidade e também não possui condições financeiras para se manter. Após defendê-la, Daniel se aproxima de Katie e passa a ajudá-la.
Alguma coisa de errado anda acontecendo comigo ou com os festivais/premiações ultimamente, pois raramente concordo com as escolhas dos jurados, e só nessa semana já me surpreendi positivamente com dois ganhadores, e isso é bom, pois mostra que começaram a olhar melhor as produções, não colocando somente filmes que olham apenas para o próprio umbigo dos diretores, sem nada a dizer realmente para um público maior. E o trabalho que o diretor Ken Loach fez com o roteiro de Paul Laverty, foi completamente digno da Palma de Ouro em Cannes, e certamente vai fazer barulho em outras premiações, como já fez com diversas indicações para o |Bafta e por aí vai. Digo isso, pois é uma trama muito atual, mostrando como é difícil conseguir tirar algum dinheiro do governo, mesmo depois de anos pagando impostos e tudo mais para ter direito a esses "benefícios", e se antes achava que era algo do nosso país de terceiro mundo, hoje após conferir a trama britânica, passo a me "conformar" que o mundo todo está perdido, e vamos trabalhar a vida toda até irmos para debaixo da terra se dependermos de algo de qualquer governante para sobreviver mais para frente. E com essa sinestesia bem explícita, o diretor pegou atores de pouco renome, e trabalhou bem com a indignação deles para cada momento, o que é muito bacana de ver, pois ao trabalhar de uma forma diferenciada (dando para os atores seus textos somente na hora das gravações), é nítida a expressão real de cada momento e vemos realmente muito improviso cênico, o que acaba tornando uma obra melhor ainda de ser vista.
Sobre as atuações, antes de falar do protagonista, precisamos falar sobre as expressões de Hailey Squires com sua Katie, pois a atriz mereceu demais ser aplaudida com o que fez em cada cena, e claro o destaque fica para seu momento de desespero no recebimento da cesta básica, ali quem não segurar a lágrima certamente não terá coração, pois todos sabem bem que uma mãe vai sempre priorizar suas crias, mas também há limites do corpo, e o que a atriz fez, da forma que fez é algo que vemos muito no teatro, algo cru e bem impactante de se ver, ou seja, essa foi apenas uma das cenas boas dela, mas a atriz mostrou serviço, e certamente por ser bem jovem, ainda veremos grandes trabalhos seus em breve. Agora falando sobre Dave Johns, temos de pontuar que o ator soube segurar a responsabilidade com unhas e dentes para que seu Daniel Blake fosse crível e marcado pelas boas doses de indignação, pela tradicional desistência dos mais velhos para com tecnologia (sendo inclusive considerada como um bicho que irá comer suas mãos) e por mostrar com doçura o bom coração que geralmente pessoas mais velhas tem para com quem também sofre situações ruins, e a cada nova cena, o ator mostrava mais personalidade, de tal maneira que o filme foi ficando seu também, até mais do que do próprio diretor, criando as nuances próprias e agradando bastante com isso. Os demais atores fizeram bem os encaixes que a trama precisava, mas nenhum teve grande destaque, claro que a diversão ficou por conta do China, a revolta por conta de todas as moças e pessoas do órgão do governo, e a fofura ficou a cargo das duas crianças, tendo um pouco de cada situação no filme para que tudo se desenvolvesse bem.
Um fator engraçado de se observar na produção é que ela acaba sendo completamente diferente de tudo que já vimos em filmes britânicos, pois os filmes acabam geralmente mostrando favelas e lugares bem barra pesada, ou já vão direto para o lado luxuoso e próximo da realeza que diversos filmes acabam focando, e aqui vemos pessoas normais, em lugares comuns e bem simples, vivendo, trabalhando em fábricas e construções, com os mercadinhos de esquina e tudo bem próximo de uma realidade que conhecemos bem, ou seja, nos vemos um pouco também dentro do ambiente que o diretor acaba mostrando, e que certamente foi um grande ponto exigido para com a equipe de arte, e que mesmo não transformando o longa numa super produção, acaba sendo impecável e bem interessante de ver. A fotografia trabalhou em todas as cenas com um tom abaixo do padrão, para criar um ambiente mais frio em que as atuações acabassem tendo peso maior nas cenas, e isso funcionou bem, pois poderíamos sim ter um longa esperançoso com tons alegres, ou algo bem melodramático com tons pastéis e tristes, mas trabalhando no meio tom, a trama acaba sendo real e íntegra de se ver.
Enfim, é um filme cru, polêmico, muito bem feito e que vale demais ser visto por todos, pois como disse reflete bem o momento em que estamos vivendo com as mudanças nas aposentadorias e direitos trabalhistas no Brasil, onde veremos que não é um problema exclusivo nosso, mas muito mais do que isso, a trama por ser real e interessante acaba ganhando nuances diferentes ao transbordar diversos sentimentos no público que acaba assistindo o longa, pois jamais esperaria sentir tudo o que senti nos 100 minutos de projeção. Bem é isso pessoal, fico por aqui agora, mas volto em breve com a última estreia que apareceu por aqui, então abraços e até mais.
PS: Só não estou dando uma nota maior, pelas falhas expressivas nos personagens coadjuvantes e até mesmo alguns quase figurantes, que pareciam nem saber para onde olhavam, pois do restante o longa valeria até mais do que 10.
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