Raramente vemos diretores contando suas próprias histórias em um filme, de modo que é muito mais usual vemos algum outro criar vértices em forma de homenagem, ou até mesmo transformar algum livro sobre determinado realizador (na maioria das vezes depois desse estar morto!) em longa, mas aqui em "Dor e Glória", Almodóvar resolveu mostrar de uma forma mais figurativa um pouco de sua vida, suas paranoias, alguns relacionamentos, sua forma de escrever, as drogas e claro os amores também (incluindo sua mãe!) de uma maneira suave e envolvente, que faz com que o público por vezes pense: será que realmente foi assim, ou será que isso é inventado. E com essa proposta o diretor permeia sua glória, ou melhor a do protagonista Salvador com as dores múltiplas, o cansaço da vida pós a morte da mãe, e claro como isso refletiu em tudo. Ou seja, um filme misto entre verdades e ficção que consegue soar muito gostoso de conferir e que acaba sendo interessante demais por todas as facetas de memória e sensibilidade que o diretor conseguiu transmitir, não ficando nem muito pesado como diversas de suas obras, nem floreado como outras, muito menos confuso como algumas, sendo seu filme de maior desenvoltura comercial, sendo que esse não era o seu objetivo.
O longa narra uma série de reencontros de Salvador Mallo, um diretor de cinema em declínio. Alguns físicos, outros de suas lembranças: sua infância nos anos 60, quando ele emigrou com os pais para Paterna, uma cidade de Valência em busca de prosperidade, o primeiro desejo, seu primeiro amor adulto e em Madrid, nos anos 80, a dor do fim desse amor, quando ele ainda estava vivo e pulsante, a escrita como a única terapia para esquecer o inesquecível, a descoberta precoce do cinema e do vazio, o vazio imensurável diante da impossibilidade de seguir. O filme fala da criação, da dificuldade de separá-la da própria vida e das paixões que lhe dão sentido e esperança. Na recuperação de seu passado, Salvador encontra a urgente necessidade de narrá-lo e, nessa necessidade, encontra também sua salvação.
Chega a ser até respeitoso a forma que Pedro Almodóvar se retrata na trama, pois geralmente olhar para dentro e se ver não é algo muito fácil, e aqui ele trabalha quase que como outro diretor lhe homenageando após ouvi-lo num confessionário ou num bar após uma longa sessão de desabafos e angústias, de modo que vemos em seu filme um retrato não apenas visual, afinal Antonio Banderas está a cara do diretor, como também um álbum de memórias, com referências a diversos filmes seus espalhados pela trama, alguns mais explícitos, outros mais em segundo plano, mas sempre trabalho o momento, não ficando como algo funcional para a vida do diretor, mas sim funcional para a trama, para que ela tivesse uma essência, ficasse doce e ao mesmo tempo melancólica, mas como ele nos diz em determinado momento do filme, bom ator não é aquele que mostra o choro, mas sim aquele que consegue mostrar que está segurando o choro, e aqui vemos isso em diversos atos como se ele não quisesse chorar suas mágoas e dores, mas sim segurar soltando tudo o que viveu e como gosta de ter vivido aquilo daquela forma, e isso acaba sendo lindo de ver.
Sobre as atuações, basicamente temos de aplaudir mais uma vez Antonio Banderas, que inclusive levou o prêmio de melhor ator em Cannes pelo longa, pois conseguiu dar vértices tão perfeitos para sua atuação de forma que vemos um Salvador cheio de histórias sendo refletidas, cheio de sentimentos, e principalmente passando exatamente a sensação que o diretor desejava mostrar em seu filme, transparecendo olhares e vivências de uma forma tão gostosa que se o filme tivesse mais duas horas assistiríamos com gosto cada interpretação sua, além de a equipe de maquiagem e caracterização o deixar a cara do diretor. Para ajudar o protagonista em seus encontros tivemos Asier Etxeandria como Alberto, um ator renegado no mundo pelas drogas, mas que consegue encontrar em um texto perfeito do diretor sua redenção e voltar aos palcos para interpretar e dar vida a uma de suas histórias, numa brincadeira mista de quase o conto do conto, que o ator soube criar olhares e momentos para ser bem preciso também. Tivemos boas participações de Penélope Cruz como a mãe do protagonista jovem, e depois Julieta Serrano como a mesma já na velhice, tivemos Leonardo Sbaraglia como Federico, um grande amor do personagem principal, que trabalhou olhares emocionados bem bonitos de se ver, e claro temos de ver o carinho que Nora Navas deu para Mercedes, que foi mais do que uma amiga para o protagonista, ajudando em tudo com muita vontade e precisão. Além claro de que temos de destacar o jovem garotinho Asier Flores que teve muita desenvoltura no papel do jovem protagonista, ensinando e tendo atitudes tão bem colocadas que acabaram agradando demais no teor do filme.
Quanto do conceito visual, a produção é singela, com poucas locações, mas com cada detalhe escolhido a dedo, desde a caverna aonde os protagonistas vão morar no começo, as lavadeiras cantando graciosamente enquanto colocavam suas roupas para secar, o teatro de um homem só emocionando a plateia, a diferença entre as casas do homem de sucesso e do renegado na profissão, mas ambos com suas paixões pelo grandioso filme sendo exposto na porta de entrada, e claro as montagens cênicas para mostrar as dores, ou seja, um filme cheio de pequenos detalhes que acabam sendo esmiuçados e facilmente daria para discutir cada momento só pelo visual, em mais um grande acerto do diretor. A trama possui muitas cores leves, diversos atos escuros para puxar a dramaticidade, mas principalmente funcionando de uma forma rápida e dinâmica dentro de todos os possíveis tons que o diretor quase pinta na tela, fazendo o filme ter fluidez e envolvimento.
Enfim, é um filme muito saboroso, com sínteses fáceis e gostosas de ver, e que funciona demais tanto para o estilo que conhecemos dos filmes do diretor, quanto para quem nunca viu nenhum outro longa dele, sendo um daqueles longas que podem ser recomendado para todos. Bem é isso pessoal, fico por aqui hoje, mas volto em breve com mais textos, então abraços e até logo mais.
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