Adam

2/08/2020 01:47:00 AM |

Existem filmes que em sua essência parecem ser mais simples do que realmente entregam, pois acabam mostrando culturas, mostrando ambientações singelas e eficazes, mas principalmente acabam nos vertendo ao tratamento que algo é feito em determinado país, e que facilmente veríamos acontecer de forma semelhante ao nosso lado também, e com "Adam" acabamos sentindo bem a presença feminina, o ar matriarcal, a densidade de um luto, e além de tudo conseguimos ver uma transformação nítida de expressão por parte da protagonista durante todo o filme, mudando seu sentimento, e praticamente nos fazendo sentir sua liberdade cênica. Ou seja, é um filme que num primeiro momento até podemos sair da sessão achando ele básico demais, mas depois acabamos refletindo sobre tudo o que foi mostrado, e o resultado acaba indo bem além.

O longa nos mostra que Abla é uma mulher viúva e mãe de uma menina de dez anos de idade. Batalhando para sobreviver e conseguir um bom futuro para sua filha, ela começa um negócio vendendo pães e doces marroquinos. Quando uma jovem grávida aparece em sua porta buscando refúgio, ela se vê obrigada a repensar seu estilo pragmático de maternidade e tem sua vida mudada completamente.

Se enalteci aos montes Maryam Touzani no seu primeiro longa como atriz em "Primavera em Casablanca", aqui em seu segundo roteiro e primeira direção também temos de dizer que será daquelas que o Marrocos vai escrever história, pois a jovem diretora e roteirista tem um estilo bem leve, uma mão direta no ponto, e principalmente sabe trabalhar bem o tema sem ficar enfeitando muito, e isso é bom de ver, pois geralmente dramas de introdução acabam sendo floreados, tendem a cair nas repetições, e aqui ela simplesmente falou para as protagonistas: "vão lá e se entreguem", pois é isso que você vê em ambas, de modo que a cada cena vão se abrindo para a diretora, e o resultado vai nos envolvendo. Claro que poderíamos esperar muito mais do filme, poderia ter algo mais tenso sabendo da cultura marroquina, poderia ter um final diferente, mas o resultado ainda assim se mantém gostoso, e essa sacada de podermos ir pensando várias coisas durante o longa sem precisar quebrar muito a cabeça funciona, ou seja, um filme leve, mas nem por isso fraco, e o acerto veio com a indicação do filme pelo país, em sua estreia, pena que não conseguiu ficar entre os cinco que vão para a premiação, mas anotem aí que ainda veremos o nome dela em grandes premiações.

Sobre as atuações é notável demais toda a expressividade de Lubna Azabal com sua Abla inicialmente fechada, cheia de medos de se abrir, corajosa em enfrentar a sociedade como uma mulher viúva que não depende de ninguém para cuidar de sua filha, e que no início tem a face tão franzida que se impõe num nível máximo, e depois com o andamento do longa vemos ela se abrir, se acalmar e até se adoçar e rir, mudando completamente trejeitos, mudando estilos, e envolvendo a todos, ou seja, foi perfeita em tudo. Da mesma forma Nisrin Erradi trabalhou sua Samia com um estilo decidido do que quer, mas precisando de ajuda, e que no decorrer conforme vai se doando para a outra protagonista a interação entre elas fica viva e emocionante num acerto incrível. A jovem Douae Belkhaouda entregou doçura para sua Warda, que foi singela nos atos, mas também conseguiu tirar muito das demais artistas, funcionando bem como elo aberto da trama. E embora apareça pouco, Aziz Hattab foi bem colocado com seu Slimani, aparecendo como ar cômico, mas também se doando em boas atitudes, o que acaba sendo um bom acerto para a trama.

Visualmente o longa não tem muito o que mostrar, mostrando a padaria/casa da protagonista com uma simplicidade de fornos, com ambientes sem nada de luxo, mas trabalhado para funcionar e envolver o público com o pouco que tem, e sabendo acertar muito no tom e na delicadeza de cada movimento de câmera, de cada close nos pães ou nos olhares das protagonistas, nos elementos cênicos como as fitas cassete, ou até mesmo nas cenas com o bebê envolto nos paninhos, até chegarmos nas cenas fora da casa com os diversos carros de viagens, as festas e culturas, o resultado soa bem feito e acerta na mosca.

Enfim, o longa está bem longe de ser perfeito, poderia ter rumos muito mais contundentes e fortes, ou então recair bem para a doçura e emocionar a todos, mas ainda assim passa através de um estilo simples sua mensagem, o estilo cultural do país no momento atual, que reflete muito do que vemos em outros lugares também, e que acaba sendo um bom acerto, valendo a recomendação e conferida. E eu fico por aqui hoje, mas volto ainda nessa semana com mais longas artísticos que apareceram pela cidade, então abraços e até logo mais pessoal.

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